quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Cinema Brasileiro: cinema de guerrilha

Quando, no pré-cinema novo, o crítico carioca Alex Viany discutia os rumos novos do ‘cineminha brasileiro’ ou cinema de arraial, caboclo, a grande preocupação era a do desenvolvimento de um modus kinema capaz de dar suporte e vazão a uma realidade nacional borbulhosa, com fervor suficiente para nutrir e queimar e tocar uma locomotiva a todo vapor. Era necessário, segundo Viany mas principalmente de acordo com Glauber Rocha, buscar no passado do cinema brasileiro a raiz capaz de frutificar esse novo cinema, dar o gás necessário e suficiente para que ele começasse a correr o mundo e ocupar um lugar como um dos principais cinemas realizados. Para toda essa geração engajada, o espírito da coisa estava ligado às figuras de Humberto Mauro e Nelson Pereira dos Santos, sendo os dois cineastas a personificação do cinema a ser buscado – uma atitude que, de certo modo, faz lembrar ao que, em época mesma, aconteceu na França com a Nouvelle Vague e sua proposta de cinema.

O cinema brasileiro, principalmente a partir de então, sempre se caracterizou por se montar e desmontar, por se articular através de atitudes de negação e por se realizar por meio da superação das limitações, fazendo dessas matérias-primas o seu modus vivendi. A forma de produção destes filmes está diretamente (ou, em certos casos, indiretamente) ligada a estética dos mesmos, sendo ambos responsáveis por acalentar ainda mais a discussão acerca do nosso cinema. Outrora, o cinema brasileiro se realizava por meio de empréstimos bancários e alguns investimentos estatais – isso após os sonhos e alucinações de Vera Cruz e outras - para depois, com a criação da Embrafilme, se financiar diretamente através do Estado. O fechamento da Embrafilme – durante o governo Fernando Collor – deixou o cinema brasileiro ligado a aparelhos, com a respiração trôpega e com ares fúnebres. A sobrevida veio com a criação das leis de incentivo a cultura, mas que, de um modo geral, não significou necessariamente a produção nacional que realmente interessa.

Nesse intermezzo, foram muitas as iniciativas e tentativas de se fazer cinema no país – a mais bem sucedida e inventiva com certeza foi feita na Boca do Lixo, o chamado cinema marginal é, sem sombra de dúvidas, juntamente com a produção de filmes do período do cinema novo, o melhor de tudo que já foi feito no Brasil (salvo alguns nomes e filmes em épocas isoladas). Essas e tantas outras alternativas de se produzir, realizar, filmar, discutir a sétima arte fez com que o crítico Jairo Ferreira criasse uma expressão que talvez melhor dê conta de dar cara a esse panorama nacional: cinema de invenção (que pode ser lido, entendido e discutido no blog)

Esse brevíssimo histórico da produção nacional serve de base para uma discussão acalentada por várias produções exibidas em janeiro desse ano na 11ª Mostra de Tiradentes. Serve para, mesmo de uma maneira talvez naïf (acredito que não) e particular, se traçar um rumo de uma produção nova no Brasil e se travar mais discussões e reflexões ocasionadas por esses filmes.

A chamada ‘retomada’ do cinema brasileiro tem como marco Carlota Joaquina, motivada pelos artifícios das leis de incentivo supracitadas. O que se viu, logo após 1994, foi o atravancamento de várias outras questões ligadas à distribuição, auto-gestão, centralização, em um cenário onde os filmes são sim feitos, mas não são vistos, a não ser nos festivais, como o de Tiradentes. Isso já foi discutido e repercutido em vários meios, como: Revista Cinética, Contracampo...,mas o que se vê é que sempre a cobra morde o próprio rabo. Daniel Caetano, co-diretor de Conceição – autor bom é autor morto e redator da Revista Contracampo, é militante de uma causa na qual filmes brasileiros devem ser exibidos na televisão pública (afinal não só se constitui como meio para isso como também há uma previsão da lei para que uma cota dos filmes seja exibida nesses meios de telecomunicação). O brasileiro não assiste ao seu cinema muito porque sua televisão faz questão de deixá-lo à margem.

O agravamento se dá com a produção Globo Filmes e Barreto Filmes – a maioria dos filmes produzidos pouco interessa, filmes como Muito Gelo e dois dedos d’água, O primo Basílio, Paixão de Jacobina são falsos números de um quinhão diminuto da produção nacional, se configuram como um cinema da repetição, são filmes de passagem que não embasam e representam em nada uma verdadeira leva do cinema brasileiro que lidam com a estética e linguagem de maneira inventiva – mesmo com alguns méritos técnicos que esses filmes conseguem trazer. Com exceção de alguns filmes, a maioria incorre em posições políticas ao longo da história, como por exemplo a de Alex Viany em relação as chanchadas (mesmo vendo-se hoje que a posição era dotada de radicalismo, pois havia sim uma produção instigante, caso, por exemplo, de Tudo Azul de Moacir Fenelon), ou seja, em nada irão contribuir para os novos rumos do cinema brasileiro, outra forma de cinema deve ser incentivada. A tomada de posição crítica é também política.

Algumas mostras de cinema têm exibido filmes que parecem querer romper com certos seguimentos de produção, além de investir em linguagens e narrativas mais ousadas que fogem ao padrão supracitado. Em janeiro desse ano, Tiradentes apresentou um cenário revigorado por produções que fizeram da limitação financeira ou de produção atributos que, de alguma forma, dão suporte a uma espécie de cinema de guerrilha que volta e meia é retomado no país. A vontade de se fazer algo é maior que qualquer fator limitador e se busca, de qualquer forma, dar vazão a idéias, estéticas e linguagens, válvulas de um outro cinema que surge no Brasil. O festival mostrou uma seara de filmes que, de um forma ou de outra, rompem com um certo cinema tatibitate para dar a cara a tapa e querer se mostrar, serem, em suma, discutidos em suas várias esferas. Sem entrar nos méritos (ou deméritos) estéticos/narrativos de alguns deles, entrando em outros, cada um tem, em tese, sua importância dentro desse cenário. A mostra tiradentina lançou aos olhos do público um grupo de filmes de diretores iniciantes que foi – interessantemente – denominada pelo curador Cléber Eduardo de Aurora – bastante oportuno para acalentar essa discussão. Dentre esses filmes estão: Meu nome é Dindi, Sábado à noite, Crítico, Ainda orangotangos, Amigos de risco, O grão, Corpo. Sete filmes de estéticas, narrativas e linguagens distintas, por vezes completamente antagônicas, mas unidos no que tange os limites de produção e suas várias nuances.

Ainda orangotangos é um longo e único plano seqüência. O diretor Gustavo Spolidoro diz ter realizado seu filme dessa maneira não só pela ousadia estética, mas também como forma de driblar trâmites financeiros. Filmando em um único plano, segundo Spolidoro, ele poderia eliminar custos de pós-produção, além de ter a possibilidade de diminuir em muitos os dias de filmagem. O mesmo argumento foi utilizado por Bruno Safadi para tornar possível a execução de seu Meu nome é Dindi. O diretor carioca lança mão de vários planos-seqüência que não só dinamizam a ação da mise en scène de seu filme – o longa ganha muito com os planos maiores, por dar vazão orgânica a um interpretação inspirada de Djin Sganzerla – como também possibilitaram que toda a filmagem se desse em menos de uma semana (só assim foi possível realizá-lo). Enquanto isso, Corpo retoma um dos temas mais presentes na filmografia brasileira atual: o período de ditadura militar. Só que o faz de uma maneira bastante diferente das demais, fazendo uso de artifícios bem mais complexos do que simplesmente relatar o momento histórico.

Há, em Pernambuco, um novo (e bom) cinema surgindo. Os impactos visuais e temáticos do sertão, da margem, do esfacelado, as criações e recriações de Cláudio Assis, Lírio Ferreira e Paulo Caldas recebem companhia de um cinema de abrangência citadina – no caso Recife de Amigos de risco. O que era para ser um curta-metragem virou longa, o que seriam problemas torna-se estética. Amigos de risco é trabalhado no limite de tudo, a despreocupação com certos aspectos fazem da montagem uma parcela mais orgânica e a câmera (próxima) do diretor Daniel Bandeira privilegia o contato epidérmico – a la Godard – entre a mesma e o personagem. Já Crítico, de Kleber Mendonça Filho, foi realizado por meio de um longo processo de coleta de entrevistas. O filme já possuía um banco de imagens pré-concebido e foi, posteriormente, recriado e revisado na montagem de Emilie Lesclaux. Orçamento baixíssimo, cinema pernambucano de parceria.

Cinema de comunhão é o que parece vir do Ceará: filmes de estéticas e narrativas arrojadas feitos na base da união de esforços e pensamentos, cinema frutificado e ainda promissor (haja visto os vídeos realizados pelos irmãos Pretti, também cearenses). O grão, de Petrus Cariry – com fotografia de Ivo Lopes Araújo – foi feito por meio de um baixo orçamento e, esteticamente, se constitui com poucos movimentos de câmera, o tripé privilegia a ação e a própria fotografia de Ivo Lopes Araújo, elementos fundamentais para a recriação fabular de O grão. A constituição de uma nova forma do olhar, a cidade em uma noite, vista de uma maneira completamente diferente, a câmera, os sons captados pelo boom modificando a percepção, tudo isso em pouco mais de uma hora em Sábado à noite, sob a direção de Ivo Lopes Araújo. O projeto inicial fora realizado através de edital do Doctv, mas que, com modificações no corte final, acabara tornando-se longa. Mais uma vez, o baixo custo e o formato digital tornaram possível a realização do filme.

Cinema de guerrilha, feito por meio de iniciativas louváveis, trabalhado no limite financeiro, estético e humano. Cinema brasileiro de invenção, união, comunhão, de combate, que se cria, reconstrói e que ousa e que, ainda assim, enfrenta o grave problema de não poder ser visto pela maioria da população brasileira. Mesmo com todos os esforços sendo avaliados e avalizados, parabenizados, é preciso notar que esse esforço não pode ser ad eternum , soluções devem ser pensadas e repensadas, políticas de exibição e distribuição revisadas, adequadas. Esses filmes são a boa semente, agora é necessário o cultivo. Munimos-nos para a colheita sem esquecer que a pá e a enxada estão do nosso lado.

Filmes citados:

Carlota Joaquina (idem, 1994/Carla Camuratti)

Conceição – autor bom é autor morto (idem, 2007/Daniel Caetano, André Sampaio, Samantha Ribeiro, Guilherme Sarmiento, Cynthia Sims)

Tudo Azul (idem, 1952/Moacyr Fenelon)

Muito gelo e dois dedos d’água (idem, 2006/Daniel Filho)

Primo Basílio (idem, 2007/Daniel Filho)

Paixão de Jacobina (idem, 2002/Fábio Barreto)

Ainda orangotangos (idem, 2007/Gustavo Spolidoro)

O grão (idem, 2007/Petrus Cariry)

Crítico (idem, 2008/Kleber Mendonça Filho)

Corpo (idem, 2007/Rossana Foglia e Rubens Rewald)

Sábado à noite (idem, 2007/Ivo Araújo Lopes)

Amigos de risco (idem, 2007/Daniel Bandeira)

Meu nome é Dindi (idem, 2007/Bruno Safadi)

Sites:

Revista Cinética

Contracampo

Blogs:

Cinema de invenção

Livros:

O processo do cinema novo (Alex Viany, 1999/Editora Aeroplano)


por Leonardo Amaral


Fonte: http://www.filmespolvo.com.br/site/artigos/cinetoscopio/127

Um comentário:

  1. Caminhos e descaminhos de TODO o Cinema Nacional passam pela Guerrilha/Independente.

    Quem não quer mais ser Guerrilha, carrega um pouco disso em si pra sempre. Quem nunca foi, vai buscar nela o que lhe falta, justamente por ser um Cinema Nacional o praticado.

    Justamente porque as anti-Guerrilha muitas vezes perdem a habilidade de se reinventar e desejam apenas se manter. E não o fazem com Cinema, fazem dele um instrumento para outra finalidade; qualquer, menos Cinema.

    Vá espiar a Guerrilha, que não é sempre uma profissão de fé, como os preconceituosos aludem gentilmente. É um celeiro, é uma plantação, é Cinema constante.

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